segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Casa Grande e Senzala

Sobre a obra: “Casagrande e Senzala” de Gilberto Freyre


     Podemos afirmar que Gilberto Freyre, sociólogo pernambucano que viveu entre 1900 e 1987, tem uma importância singular na cultura brasileira. Alguns inclusive, chegam a afirmar que o livro Casagrande e Senzala está para a Sociologia nacional no mesmo parâmetro que o livro do Gênesis está para a Bíblia cristã.
     Este, dentre outras obras foram traduzidas para trezes idiomas, inclusive o japonês em 2000, fato que ocorreu dentro das comemorações do seu centenário (fora escrito durante os anos 30 durante o exílio).
     Em Casagrande e Senzala, Freyre explica pela primeira vez, como os índios, os portugueses e os negros criaram uma nação miscigenada sem paralelo no mundo. Com uma análise minuciosa, ele apresenta características da sociedade brasileira que perduram até hoje. Lançando em 1933, ano de ascensão de Hitler ao poder, época em que o regime nazista com idéias racistas começava a se afirmar, levou o sociólogo a ser considerado um radical de esquerda nos anos 30, período em que havia vários simpatizantes das idéias nazi-fascistas.
     Mais adiante, nos anos 50, Casagrande e Senzala, provocou controvérsias no lado oposto ao fazer uma defesa apaixonada da colonização portuguesa. Nesta época, o ditador português Antonio de Oliveira Salazar usou as idéias embuídas no livro, para pôr em prática sua política contra a independência das colônias africanas. Além disto, o sociólogo aceitou um convite de Sarmento Rodrigues, ministro de Salazar, para fazer uma viagem de pesquisa às colônias lusitanas em 1953. O intelectual chegou a elogiar em conferências, os feitos do ditador português e sua política. Esses fatos, levaram Freyre a ser demonizado pela esquerda e fez com que a sua obra ficasse durante toda a década de 1970 (auge do marxismo no Brasil), longe do currículo das universidades brasileiras. Nesta época Freyre queixou-se de sofrer “patrulha ideológica”, também pelo fato de ser simpático ao regime militar de 1964.
     O professor uruguaio Guillermo Giucci, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que já trabalhou nas Universidades americanas de Princeton e Stanford e o seu conterrâneo Enrique Laverta , são considerados ou dois maiores especialistas em Gilberto Freyre. Segundo eles, a queda do muro de Berlim fez bem a Freyre, já que o referencial marxista já não é predominante, o que leva as obras pluralistas como as dele, voltarem a despertar interesse. Sendo ele um precursor na hibridação cultural, é natural que em uma época de globalização este tema venha à tona para discussão.
     Devido à complexidade, característica sua, a obra não se encaixa nos conceitos ideológicos. Ele mesmo costumava dizer que os radicalismos faziam sucesso porque as pessoas têm preguiça de refletir. Portanto, adotar uma bandeira ou slogan é mais fácil do que pensar. Sempre cultivou a dúvida e repudiou clichês e as conclusões forçadas, isto o levou a ser polêmico tanto à esquerda quanto à direita.
     Em Casagrande e Senzala o autor discute as teorias racistas e os determinismos climáticos e adotados não só pelos nacionais-raci-climáticos, mas por intérpretes de um “Brasil”, como Silvio Romero, Euclides da Cunha e Oliveira Viana. Freyre desce à colonização portuguesa, incluindo as contribuições indígenas e africanas, no ensaio da importante trilogia completada por: “Sobrados e Mocambos” de 1936, e “Ordem e Progresso” de 1956. Série intitulada: “Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil”. Havia um outro projeto nunca finalizado chamado: “Jazigos e Covas Rasas”.
     Em sua obra utiliza títulos duplos em que os extremos se ligam, revelando a sua teoria de sociedade e especificamente das singelezas da cultura brasileira, como que formada a partir do que ele define como um “equilíbrio de antagonismos” em que senhores e escravos, índios e brancos se completam, se reúnem e se compreendem através da miscigenação de raças e culturas.
     O livro chocou e causou sensação na época de sua publicação. A descrição de hábitos sexuais dos senhores de engenho, patriarcas e chegados a um certo sado-masoquismo, valeu-lhe pesadas críticas e ataques, sendo interpretado como um autor obsceno e pornográfico. Na crítica coletou informações reais, mas que estavam esquecidas em documentos por ele consultados, o que não era diferente da suposta elite moralista e puritana da época que era a suposta negação da própria sexualidade.
     Incluía a idéia de que os escravos africanos, especificamente os oriundos de regiões muçulmanas, influenciaram a formação de civilização brasileira, ao introduzirem hábitos de higiene e alimentação que influenciariam o elemento luzo, até então, desconhecido de tão nobres hábitos.
     Freyre inova em objeto, método e estilização. Não era historiador de formação, mas detinha o título de mestre em Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais pela Universidade de Columbia, em Nova York, estudando nos anos 20 com o antropólogo Franz Boas.
     A capa do livro, com desenho de Cícero Dias, mostra com detalhes, o dia-a-dia do engenho, reconstruindo os hábitos e estilos do passado como a arquitetura, tradições, culinária. Na obra em si, relata práticas sexuais, jogos infantis, roupas e vestuário. Recorre a fontes pouco conhecidas até então, como arquivos e contas particulares de famílias de Pernambuco, livros e atas de câmaras, anúncios de jornais, revistas e os depoimentos orais de sobreviventes de outrora abastadas famílias da região de Pernambuco. Tudo isso servindo com enorme veracidade documental e secretamente organizada ao longo do livro.
     Aborda também o cotidiano da família patriarcal brasileira e propõe uma leitura em destaque ao analisar o papel das mulheres e da criança. Antecipa curiosamente a História da Vida Privada, em voga nos anos 60 do século XX, com os autores franceses Georges Juby e Philippe Áries, que organizou a “História da Vida Privada”, regente no Brasil, por Fernando Novais em “História da Vida Privada no Brasil”.
     Freyre, crítico obcecado no estudo da sociedade brasileira acaba por incorporar à historiografia nacional, uma nova forma de narrativa, ao incorporar a oralidade à escrita, um importante diálogo com a literatura modernista que se produzia na época. Rompe com cânones estabelecidos anteriormente ao utilizar a linguagem popular que incorpora por sua vez as cantigas e provérbios, do que propriamente um Brasil épico, realizando assim a ruptura que supostamente distancia o popular do erudito.
     Sua teoria seduz e magnetiza o leitor, que absorve o relato aparentemente despretensioso, que coloca idéias(discutíveis) sobre o processo de “democratização” que teria levado á ascensão do mestiço como capaz de dissipar o poder e a autoridade do senhor de engenho.
     Analisa para as elites do sul e sudeste brasileiro, cuja hegemonia crescia, já que a “aristocracia nordestina”, aparentemente fraca cultural e politicamente, tinha sido rica em sua história e costumes. A sua família e sociedade formaram para si própria, a partir da economia agrária-exportadora, estabelecendo-se no regime da escravidão negra e obviamente na cultura da cana-de-açúcar na região do litoral, modelo seguido pela atividade mineradora e pelo ciclo do café.
     O autor propõe que se assuma e reconheça um passado colonial formado por senhores de engenho, dos quais os brasileiros dependem, e que construíram uma sociedade patriarcal, geradora de uma cultura universal, base para a origem da civilização brasileira, através da integração de costumes ibéricos, africanos e indígenas. Tenta reabilitar na idéia de região, a cultura do nordeste, abafada e esquecida pelos ideais estéticos propostos pelos modernistas do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, com interesses voltados para a artística vanguarda européia.
     Freyre apresenta a sua dualidade, tornando-se mais escritor do que propriamente um sociólogo, ainda que utilize métodos acadêmicos de investigação. Seu trabalho é inspirado em ensaístas como Montaigne, Pascal, Bennetet, Pater, Ortega y Garret e os místicos San Juan de la Cruz e Tereza D’Ávila, sendo um dos últimos a apresentar um estilo próprio, mais artístico do que científico, algo próximo da literatura introspectiva. Não utiliza a ordenação cronológica da História tradicional ou a adoção de feitos da Igreja e do Estado, mas sim a contribuição das três raças que iriam construir o Brasil.
     Na busca da compreensão e do auto conhecimento, tenta conciliar a elite brasileira com seu passado colonial escravista e presente autoritário, propondo ainda, a superação das idéias racistas, mas prendeu-se a critérios de etnicidade ao usar as raças como sinônimo de cultura e caráter evolucionista onde existiriam povos mais ou menos adiantados. Suas idéias são também as idéias da elite e do povo, cujo idealismo entre ordem e liberdade, entre autoridade e servidão provocou discussão e análise.
     Em suma, Casagrande e Senzala discute a escravidão, a mistura de raças, a integração de homem e mulher dentro da sociedade patriarcal, onde utiliza vasta documentação e fontes históricas, demonstrando o gosto pela descrição e a visualidade do idioma. Em sua descrição, afirma que negras e índias ocupavam o espaço da servidão, e a satisfação dos apetites sexuais dos senhores. A negra, ocupando o papel anterior ao da índia, era o de uma concubina um pouco mais culta, e com uma capacidade maior de adaptação ao novo tipo de vida.
     Em 1958, seu amigo Jorge Amado festejou os 25 anos da obra em um artigo que ressalta o impacto que ele provocou. Para ele, Freyre inaugurou um novo tempo no terreno da criação, estilo e pesquisa à ciência, além de ressaltar o grande passo para a democratização na escrita brasileira. Isto aconteceu assim como a publicação de A Bagaceira por José Américo de Almeida, que abria caminho para uma nova geração de romancistas. Para ele, a obra conquistou a confiança dos leitores transformando em prazer e alegria a obrigação de ler-se um volume de estudo.
     O escritor baiano considera que Freyre abriu caminho para que se iniciassem novos estudos, e que outros fossem retomados, ao levantar dúvidas e questões. Anteriormente, os estudos afro-brasileiros eram olhados com desprezo além de serem esquecidos os trabalhos de Nina Rodrigues e Manuel Quirino. Ao realizar o I Congresso Afro-brasileiro, estes estudos encontraram ambiente, a ponto de Artur Ramos e Edson Carneiro terem espaço para realizarem seus trabalhos.
     Segundo ele, até aquele momento, muitos livros sérios e grandes, por diversos autores e pelo próprio Gilberto Freyre foram publicados, mas nenhum sacudiu o Brasil a ponto de abalar a opinião pública como Casagrande e Senzala.

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